Pare de chamar os outros de fascistas
Você nem sabe o que essa palavra quer dizer
Fascismo é provavelmente
um dos conceitos mais repetidos e pouco compreendidos da história dos
dicionários políticos.
Veja você mesmo.
Quantas vezes você ouviu
essa expressão nos últimos meses?
Eu poderia apostar que não
seria possível listar nos dedos de uma mão.
E isso para não falar da
possibilidade que você mesmo tenha sido acusado disso.
Eu vivo lendo isso por
aqui.
Quando não como crítica
aos textos que escrevo, como resposta aos comentários dos próprios leitores.
Todos devidamente
catalogados como fascistas.
A questão é...
Alguém saberia realmente
explicar o que exatamente é o fascismo?
Ou será que todo mundo
repete essa palavra sem ter a mais remota noção do que ela significa?
De fato, parece inegável
que o termo alcançou o século atual servindo para basicamente qualquer coisa.
Fulano é fascista porque
sai para protestar contra o governo com uma camiseta com as cores do país.
Beltrano joga no mesmo
time dele porque torce o nariz para as ideias de esquerda.
Sicrano também segue esse
negócio porque vota num cara que eu não curto.
Esse é o grande problema
aqui, pouca gente sabe exatamente o que diz quando usa essa expressão.
Fascismo é dos termos mais
imprecisos popularizados na política.
Segundo o Dictionnaire
historique des fascismes et du nazisme “não existe nenhuma definição
universalmente aceita do fenômeno fascista, nenhum consenso, por menor que
seja, quando à sua abrangência, às suas origens ideológicas ou às modalidades
de ação que o caracterizam”.
Stanley G. Payne, um dos
mais reconhecidos historiadores do fascismo no mundo, foi outro a atestar esse
fenômeno.
Ele diz que o “fascismo
permanece sendo, provavelmente, o mais vago dos termos políticos mais
importantes”.
E não conta nenhuma
novidade.
Já em 1946, George Orwell
condenava o fascismo a uma palavra “quase inteiramente sem sentido” e que
“qualquer inglês aceitaria ‘valentão’ como sinônimo” dela.
Por certo, fascismo acabou
se tornando uma espécie de insulto político a qualquer figura opositora aos
ideais de esquerda.
Assim, de forma vaga, da
maneira mais banal possível.
Você pode perfeitamente
virar um fascista apenas por não corroborar os discursos de um político de um
determinado partido mais progressista, daquele coletivo revolucionário da sua
universidade ou de algumas das pautas mais caras a essa turma toda.
Pra muita gente, ou você
abraça toda estética, e os jargões, e a luta de um grupo ideológico muito
particular, ou você está condenado a desempenhar para sempre o papel de
fascista.
A questão é que isso tudo
evidentemente não faz o menor sentido.
E ainda assim a ideia é
facilmente disseminada.
Basta reparar nas
manchetes.
Nos noticiários ela não
cansa de marcar presença.
Sergio Moro, por exemplo,
é um clássico fascista.
E não apenas ele, a Lava
Jato é irredutivelmente um braço do fascismo.
José Serra?
Fascista.
Alckmin também.
Cássio Cunha Lima idem.
Aécio Neves?
Fortaleceu a “direita
fascista”.
O MBL também.
Todos fascistas.
Mil vezes fascistas.
Ainda que vago, no
entanto, mesmo sem um aparato ideológico abrangente ou pensadores influentes,
há alguns elementos escancarados a respeito da natureza do fascismo.
Todos, e isso faz total
sentido, ignorados por aqueles que mais utilizam essa expressão.
Abaixo, 4 coisas que você precisa saber antes de sair
por aí acusando os outros usando esse nome em vão:
Grave bem.
Essa é a primeira coisa
que você precisa saber antes de sair por aí acusando alguém usando essa
expressão:
O maior inimigo do
fascismo é o liberalismo.
Essa era a opinião de
Mussolini, o grande líder totalitário italiano.
“O fascismo é
definitivamente e absolutamente oposto às doutrinas do liberalismo, tanto na
esfera econômica quanto na política.”
Para ele, o liberalismo
era uma espécie de “religião desconhecida” que precisava ser combatida.
Mussolini era desses que
acreditava que o século dezenove havia sido o grande reinado do liberalismo no
mundo e que o século vinte seria o “século de fascismo”.
Não por acaso, ele resumiu
toda doutrina fascista numa regra muito clara, que virou quase um bordão de tão
precisa:
“Tudo para o Estado, nada
contra o Estado, nada fora do Estado.”
Reparou?
Essa é a essência do tal
Estado totalitário:
É tudo nele e nada fora
dele.
Ou seja, o fascismo é a
ideia que todas as ações humanas devem satisfações a uma organização central.
O Estado deve dirigir uma
economia corporativista, controlando cada movimento do mercado, ao mesmo tempo
em que impõe claros limites às liberdades individuais.
Em resumo, esse é o exato
oposto do que defendeu toda literatura liberal ao longo dos últimos trezentos
anos.
Isso também é muito
próximo daquilo que os socialistas instituíram em diferentes regimes ao redor
do mundo no último século.
Moeller van den Bruck, o
ideólogo nazista que serviu como forte influência para o Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães, captou o sentimento da juventude alemã
antes da ascensão de Hitler.
Era genuinamente
antiliberal.
“O liberalismo é uma
filosofia de vida à qual a juventude alemã volta hoje as costas com nojo,
cólera e um desprezo especial, pois não há nada mais exótico, mais repugnante e
mais contrário à sua filosofia. A juventude alemã dos nossos dias reconhece no
liberalismo o arqui-inimigo.”
Para ele, a ascensão do
fascismo nos mais diversos cantos da Europa era facilmente explicada:
“Todas as forças
antiliberais estão se unindo contra tudo que é liberal.”
No artigo “A redescoberta
do liberalismo”, o alemão Eduard Heimann, um dos líderes do socialismo
religioso alemão, era outro a destacar o ódio dos fascistas pelos liberais:
“Hitler jamais pretendeu
representar o verdadeiro liberalismo. O liberalismo tem a honra de ser a
doutrina mais odiada por Hitler.”
Passado tanto tempo, é
exatamente por isso que soa tão estúpido quando liberais são acusados de
fascistas. Na verdade é o contrário. O fascismo é uma espécie de religião do
Estado. É a crença que o Estado deve assumir totalmente a responsabilidade por
cada aspecto da vida humana em detrimento do individualismo. O Estado deve
gerir o nosso bem-estar e cuidar da nossa saúde. E não apenas isso. Deve também
impor uma uniformidade de pensamento – leia-se: instaurar uma ditadura do
pensamento único, onde as expressões não são livres, construídas a partir da
boa vontade de uma liderança política.
Na prática, a construção
de uma sociedade fascista é inteiramente calcada pelo antiliberalismo.
Poucos regimes foram tão
revolucionários na defesa dos direitos trabalhistas quanto o fascismo.
Não por acaso, a nossa
própria legislação na área, criada no auge do Estado Novo, por Getúlio Vargas,
tem como base um documento italiano do final da década de vinte, a Carta del
Lavoro, onde o Partido Nacional Fascista definiu os fundamentos das relações de
trabalho.
Até hoje, aliás, todas
essas determinações não apenas permanecem organizando a vida econômica do país
em corporações, com sindicatos patronais e trabalhadores tutelados pelo Estado,
como são defendidas em grande parte por militantes de esquerda.
E a CLT não foi o único
documento a seguir esse princípio.
A própria Constituição
Federal de 1937 tem no artigo 138 uma tradução idêntica à declaração III da
Carta del Lavoro.
E o que ela prevê?
A unicidade sindical sob
tutela do Estado, as contribuições compulsórias e os contratos coletivos de
trabalho, mecanismos que de forma intacta sobreviveram à Constituição de 1988.
Foi dessa maneira que o
fascismo mudou a cara do trabalhismo no último século, abraçando o sindicalismo
revolucionário e dando ao Estado o papel de tutor das relações laborais,
fiscalizando patrões, empregados e determinado cada aspecto da vida do
trabalho.
Quer dizer, nunca houve no
fascismo italiano o interesse em abolir completamente a propriedade privada,
como definia a utopia soviética. Os fascistas ousavam dominá-la através de
corporações intimamente ligadas ao Estado.
Em 1935, os sindicatos
fascistas tinham mais de 4 milhões de filiados.
Nada parecido havia sido
testemunhado proporcionalmente em nenhum outro canto do mundo até então. A
Itália era um grande feudo sindicalista.
Do outro lado do
Atlântico, essa é a base do trabalhismo tupiniquim, uma cópia escrachada do
fascismo italiano.
Não apenas no que diz
respeito à perpetuação de uma cultura sindical (e nunca é demais lembrar que há
mais de 15 mil sindicatos no Brasil), como no fato dessas corporações serem tão
próximas ao Estado (de abril de 2008 a abril de 2015, o governo federal
repassou mais de R$ 1 bilhão para as centrais sindicais).
Boa parte dos nossos
sindicalistas, não obstante, com o dedo em riste acusam seus opositores de
fascistas. Nada mais contraditório.
Há algo inegável a
respeito das ideologias fascistas e populistas de esquerda nasceram como uma
espécie de irmãos Karamazov dos dicionários políticos.
E não sem motivo.
Em geral, tanto o primeiro
grupo quanto o segundo construiu suas plataformas ideológicas no último século
a partir do aumento do gasto público, da criação de políticas econômicas
equivocadas justificadas para atender as massas, da propagação da ideia que o
livre mercado é um mal a ser combatido, da figura centrada num grande líder
carismático, do uso das estruturas do Estado para a construção da propaganda
oficial, do combate à globalização como proteção à economia nacional, da crença
no partido como um instrumento inquestionável de criação de prosperidade e
justiça social, da luta contra um inimigo em comum (os norte americanos, o
comércio internacional, os judeus), da construção de um discurso que una o
grande líder ao “povo” e condene todas as figuras contrárias ao partido como
“antipovo”, da perseguição à propriedade privada, da manipulação dos números
oficiais, da descrença em escândalos de corrupção do governo.
Isso tudo está em Getúlio,
Hitler ou Mussolini.
Mas também está em Chávez,
Perón e Fidel.
Há evidentes diferenças
entre fascistas e populistas de esquerda, certamente.
Ainda assim, não é um
equívoco apostar que há mais coisas que os aproxima do que os afasta.
Sabe aquela imagem
estereotipada do grande líder totalitário concentrando todo poder possível nas
mãos para dar cabo ao seu plano psicopata de destruir completamente o mundo?
Sinto dizer, mas longe dos
desenhos animados e dos pastelões de Hollywood, ela é falsa.
Em geral, a mesma noção
altruísta que teoricamente move políticos dos mais diversos credos ideológicos
também inspira diferentes líderes totalitários, todas as suas ações políticas
são justificadas a partir de uma hipotética luta pela transformação do mundo
vigente, do combate às mazelas históricas, da crença que as suas ideias são
naturalmente superiores e benéficas ao maior número de pessoas.
E é justamente graças a
esse entendimento que seu plano político é infalível na construção de uma
sociedade mais justa e estável, e que seus opositores representam uma ameaça ao
bem estar geral da população, que líderes totalitários e seus simpatizantes
usualmente criam algumas das ditaduras mais perversas que a humanidade já
testemunhou, dentre as quais uma muito peculiar, ainda tão em voga nos dias
atuais, a do pensamento único.
Via de regra, todos
aqueles que buscam construir o paraíso na terra concentrando poder, acabam
produzindo catástrofes infernais.
E se tirania atinge seu
ápice na instauração da nova identidade política, com muita repressão policial,
ela alcança forte poderio também no campo das ideias. Acreditando defender um
mundo moralmente superior, fascistas, assim como seus irmãos bastardos, os
populistas de esquerda, condenam aquilo que entendem como pensamento dominante
(essencialmente capitalista e individualista) para dar lugar a um novo reino da
opinião e das condutas pessoais, construídas sobre o mito da juventude como
artífice da história, da total dedicação à comunidade, da camaradagem e do
espírito guerreiro e revolucionário.
Em geral, fascistas e
populistas de esquerda não apenas censuram todos aqueles que destoam de suas
crenças, tratados literalmente como politicamente incorretos, como ameaçam
fisicamente e moralmente seus opositores.
Dessa forma, a liberdade
de expressão vira um mero conceito pequeno burguês, a própria palavra é um
instrumento do coletivo, da maioria, do “povo”, e deve ser silenciada quando
utilizada pelos não alinhados ao pensamento único.
Não apenas os veículos de
informação que denunciam descasos do partido são condenados ao descrédito, quando
não à censura, como pensadores de oposição acabam tratados como arqui-inimigos
dos trabalhadores e do bem comum.
Sem escapatória, ou você
repete o discurso coletivo, ou você morre abraçado ao riso da estupidez.
Assim, a essa altura do texto, é muito provável que
muitos daqueles que você está acostumado a ver acusando os outros de fascistas,
com expressões autoritárias, dedos em riste e soluções inquestionáveis para
todos os problemas do mundo, quase sempre são eles mesmos os mais fervorosos
praticantes do fascismo, um fascismo velado, cínico e demagogo, mas não menos
autoritário.
Escondidos sob o véu desse autoritarismo do bem,
pretensiosamente inclusivo e justiceiro, os fascistas envergonhados dos dias
atuais, como os do passado, são quase sempre os primeiros a acusar os outros
daquilo que eles mesmos fazem, e justificam seus protestos, suas greves, seus
boicotes e suas vaias, com toda uma insolência muito peculiar, à incendiária
construção de um novo mundo, mais justo.
Isto posto, não nos resta
dúvida que o fascismo atravessou o século e deixou de ser uma marca restrita
aos líderes totalitários.
Por isso, esqueça Hitler,
Vargas ou Mussolini.
Olhe ao seu redor.
O fascismo é um
instrumento da modernidade que concentra sua luta na construção de um mundo
melhor através de ações estatais muito específicas e irredutíveis que moldam as
particularidades humanas sob a égide do politicamente correto e do pensamento
único.
Lembre-se disso na próxima vez que sair por aí
acusando os outros usando esse nome.
Você pode ser o fascista da vez.
Você só não sabe disso ainda.
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