quarta-feira, 24 de novembro de 2010

SIMPLICIDADE E SABEDORIA

Os jovens e os adultos pouco sabem sobre o
sentido da simplicidade.
Os jovens são aves que voam pela manhã:
seus vôos são flechas em todas as direções.
Seus olhos estão fascinados por 10.000 coisas.
Querem todas, mas nenhuma lhes dá descanso.
Estão sempre prontos a de novo voar.
Seu mundo é o mundo da multiplicidade.
Eles a amam porque, nas suas cabeças
a multiplicidade é um espaço de liberdade.
Com os adultos acontece o contrário. Para eles
a multiplicidade é um feitiço que os aprisionou
uma arapuca na qual caíram.
Eles a odeiam, mas não sabem como se libertar.
Se, para os jovens, a multiplicidade tem o nome
de liberdade, para os adultos a multiplicidade
tem o nome de dever.
Os adultos são pássaros presos nas gaiolas do dever.
A cada manhã 10.000 coisas os aguardam com as
suas ordens  (para isso existem as agendas, lugar
onde as 10.000 coisas escrevem as suas ordens!).
Se não forem obedecidas haverá punições.

No crepúsculo, quando a noite se aproxima, o
vôo dos pássaros fica diferente.
Em nada se parece com o seu vôo pela manhã.
Já observaram o vôo das pombas ao fim do dia?
Elas voam numa única direção.
Voltam para casa, ninho.
As aves, ao crepúsculo, são simples.
Simplicidade é isso:
quando o coração busca uma coisa só.

Jesus contava parábolas sobre a simplicidade.
Falou sobre um homem que possuía muitas
jóias, sem que nenhuma delas o fizesse feliz.
Um dia, entretanto, descobriu uma jóia
única, maravilhosa, pela qual se apaixonou.
Fez então a troca que lhe trouxe alegria:
vendeu as muitas e comprou a única.

Na multiplicidade nos perdemos:
ignoramos o nosso desejo.
Movemo-nos fascinados pela sedução
das 10.000 coisas.

Acontece que, como diz o segundo
poema do Tao-Te-Ching, “as 10.000
coisas aparecem e desaparecem sem cessar.“

O caminho da multiplicidade é um caminho
sem descanso.
Cada ponto de chegada é um ponto de partida.
Cada reencontro é uma despedida.
É um caminho onde não existe casa ou ninho.
A última das tentações com que o Diabo tentou
o Filho de Deus foi a tentação da multiplicidade:
“Levou-o ainda o Diabo a um monte muito alto
mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua
glória e lhe disse:
‘Tudo isso te darei se prostrado me adorares.’
“ Mas o que a multiplicidade faz é estilhaçar o coração.
O coração que persegue o “muitos“ é um coração
fragmentado, sem descanso.
Palavras de Jesus:
“De que vale ganhar o mundo inteiro e arruinar a vida?“
(Mateus 16.26).

O caminho da ciência e dos saberes é o caminho da
multiplicidade.
Adverte o escritor sagrado:
“Não há limite para fazer livros, e o muito estudar
é enfado da carne“
(Eclesiastes 12.12).
Não há fim para as coisas que podem ser
conhecidas e sabidas.
O mundo dos saberes é um mundo de
somas sem fim.
É um caminho sem descanso para a alma.
Não há saber diante do qual o coração
possa dizer:
“Cheguei, finalmente, ao lar“.
Saberes não são lar.
São, na melhor das hipóteses, tijolos para
se construir uma casa.
Mas os tijolos, eles mesmos, nada sabem
sobre a casa.
Os tijolos pertencem à multiplicidade.
A casa pertence à simplicidade:
uma única coisa.

Diz o Tao-Te-Ching:
“Na busca do conhecimento a cada dia se
soma uma coisa.
Na busca da sabedoria a cada dia se
diminui uma coisa.“

Diz T. S. Eliot:
“Onde está a sabedoria que perdemos
no conhecimento?“
Diz Manoel de Barros:
“Quem acumula muita informação perde
o condão de adivinhar.
Sábio é o que adivinha.“

Sabedoria é a arte de degustar.

Sobre a sabedoria Nietzsche diz o seguinte:
“A palavra grega que designa o sábio se prende
etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens
o degustador, sisyphus, o homem do gosto
mais apurado. “

A sabedoria é, assim, a arte de degustar
distinguir, discernir.
O homem do saberes, diante da multiplicidade
“precipita-se sobre tudo o que é possível saber
na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço.“

Mas o sábio está à procura das
“coisas dignas de serem conhecidas“.
Imagine um bufê:
sobre a mesa enorme da multiplicidade, uma
infinidade de pratos.
O homem dos saberes, fascinado pelos pratos
se atira sobre eles:
quer comer tudo.

O sábio, ao contrário, para e pergunta ao seu corpo:

“De toda essa multiplicidade,
qual é o prato que vai lhe dar prazer e alegria?“

E assim, depois de meditar, escolhe um...

A sabedoria é a arte de reconhecer e degustar a alegria.
Nascemos para a alegria.
Não só nós.
Diz Bachelard que o universo inteiro tem um destino de felicidade.

O Vinícius escreveu um lindo poema com o título de “Resta...“
Já velho, tendo andado pelo mundo da multiplicidade, ele olha
para trás e vê o que restou:
o que valeu a pena.

“Resta esse coração queimando como um círio numa
catedral em ruínas...“

“Resta essa capacidade de ternura...“

“Resta esse antigo respeito pela noite...“

“Resta essa vontade de chorar diante da beleza...“.

Vinícius vai, assim, contando as
vivências que lhe deram alegria.
Foram elas que restaram.

As coisas que restam sobrevivem num lugar da alma
que se chama saudade.

A saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo
que ela provou e aprovou.

Aprovadas foram as experiências que deram alegria.
O que valeu a pena está destinado à eternidade.
A saudade é o rosto da eternidade refletido no rio do tempo.

É para isso que necessitamos dos deuses, para que o rio do
tempo seja circular: “Lança o teu pão sobre as águas
porque depois de muitos dias o encontrarás...“

Oramos para que aquilo que se perdeu no passado nos
seja devolvido no futuro.
Acho que Deus não se incomodaria se nós o
Chamássemos de Eterno Retorno:
pois é só isso que pedimos dele, que as coisas da
saudade retornem.

Ando pelas cavernas da minha memória.

Há muitas coisas maravilhosas:
cenários, lugares, alguns paradisíacos, outros
estranhos e curiosos, viagens, eventos que marcaram
o tempo da minha vida, encontros com pessoas notáveis.

Mas essas memórias, a despeito do seu tamanho
não me fazem nada.
Não sinto vontade de chorar.
Não sinto vontade de voltar.

Aí eu consulto o meu bolso da saudade.
Lá se encontram pedaços do meu corpo, alegrias.
Observo atentamente, e nada encontro que tenha
brilho no mundo da multiplicidade.

São coisas pequenas, que
nem foram notadas por outras pessoas:
cenas, quadros:
um filho menino empinando uma pipa na praia;
noite de insônia e medo num quarto escuro
e do meio da escuridão a voz de um filho que diz:
“Papai, eu gosto muito de você!”
filha brincando com uma cachorrinha que já morreu
(chorei muito por causa dela, a Flora), menino
andando à cavalo, antes do nascer do sol, em meio
ao campo perfumado de capim gordura, um velho
fumando cachimbo, contemplando a chuva que cai
sobre as plantas e dizendo:
“Veja como estão agradecidas!“
Amigos.
Memórias de poemas, de estórias, de músicas.

Diz Guimarães Rosa que
“felicidade só em raros momentos de distração...“ Certo.
Ela vem quando não se espera, em lugares que
não se imagina.
Dito por Jesus:
“É como o vento:
sopra onde quer, não sabes donde vem nem para onde vai...“

Sabedoria é a arte de provar e degustar a alegria, quando ela vem.

Mas só dominam essa arte aqueles que têm a graça da simplicidade.


Porque a alegria só mora nas coisas simples.

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